As estrelas no céu e o asfalto por baixo. E eu no meio, dentro de um carro, com veículos por todos os lados, quase 11h da noite. Engarrafamento na freeway, BR 290, estrada utilizada por milhares de sedentos pelo mar. Nem sei quantos mil, mas uns 80, 90, 100 carros por minuto passam nos horários de pico nesse caminho, quase único para o litoral norte gaúcho.
O caminho da praia é relativamente tranqüilo, a não ser ao se levar o susto do pagamento do pedágio. De ida e volta dá 14,80 reais, ou seja, fora as “comodidades”, se o motorista está sozinho, não vale a pena encarar esse tumulto por vários motivos.
Clima de verão, descontração e tal. Pois acho que nesse ambiente o imperativo deveria ser um fomento à carona solidária. Muitos carros poderiam ser eliminados desse estafante trajeto, tão cheio de ultrapassagens, entre uma reta e imperceptíveis curvas.
Como adepta de carona, já conheci muita gente legal. Já empinei muito meu dedão na estrada. Tá certo que passei por uma situação pra lá de chata e constrangedora, mas daquela vez eu pedi. Era noite, com “um frio de renguear cusco” e eu estava no desespero. Precisava ir para Porto Alegre e estava uma estrada que dava acesso à Santa Maria, ou seja, muito longe do meu destino final, pois já estava com passagem comprada para ir de Cachoeira do Sul, minha terra natal, até Porto alegre.
Pois só dessa, em dezenas de outras vezes, levei um susto. O motorista do caminhão de óleo (não me lembro de qual tipo) reduzia e ia para o acostamento, perguntando se eu não queria fazer um “pograminha”. Eu consegui manter a compostura, dei um desdobre no cara, modéstia à parte, que, no final do trajeto ainda queria me deixar em casa. Mais: pediu até desculpa pela ousadia, pois perguntou diversas vezes se eu era virgem.
Também, naquele tempo, do alto dos meus vinte e poucos anos, me achava dona do universo. Já tinha conseguido fazer tratamento dentário na universidade que estudava porque conheci alunos da Odonto durante uma carona. Já tinha ido e vindo de Santa Catarina com minha mochila, sem falar das vezes que saía da aula de sábado com um amigo para ficarmos na curva da 290, que corta o Rio Grande do Sul até Uruguaiana, na Fronteira com a Argentina. Tenho tantas aventuras com final feliz de carona, mas essas nem vou me deter a contar.
Lembrei um pouco desses episódios porque acho que deveria haver um incentivo, programas de política pública para fomentar o uso de um carro por mais de uma pessoa. Já pensou que interessante seria para os solteiros, solitários, ou até mesmo para quem quer rachar o combustível para tornar a viagem mais econômica?
Por exemplo, poderia se ter um cadastro com os gostos e interesses entre as pessoas. A divisão do espaço interno de um automóvel poderia servir de cenário para um bom bate-papo ou simplesmente uma boa companhia, sem malícia entre os olhares. Recordo dos tempos que trabalhei no Ibama em Brasília, local onde praticamente não passa ônibus de linha (de hora em hora e olhe lá). Várias vezes peguei carona no pórtico com pessoas que nunca havia visto antes.
É uma excelente oportunidade de se perceber o carro como extensão do motorista, entrando em um universo desconhecido. No embate com o outro, ver a si próprio. A carona permite uma desconstrução de conceitos, as vezes pré-estabelecidos. A música que o desconhecido escuta tem algo a ver com o tipo de condução? Ele guarda o lixo ou os rejeitos são jogados pela janela? O ambiente interno está perfumado? É um micro ecossistema que pode ser sentido em alguns instantes. Esse contato enriquece os antenados e ainda dá indícios de como é o modo vida de tantas outras pessoas.
- Foto: Silvia Marcuzzo
Contudo, infelizmente hoje se divulga muito mais o medo, a trapaça e a insegurança. Sempre terá gente que vai querer passar a perna nos outros. Mas continuo achando que tem gente legal por aí. E acredito que a maior parte das pessoas são confiáveis para dar uma carona (a não ser com relação ao volante, mas isso é outra história).
Poderia haver locais como pontos de encontro para isso. Já sei, vai me
chamar de ingênua, que isso não é possível, que poderão ser acionados processos, que o motorista é responsável por todos etc. Só que argumento que se a cidade já está entupida de carros, as estradas também. Especialmente aquelas que servem de vias de válvulas de escape das metrópoles.
Ficar dentro do carro dentro de engarrafamentos sozinho é muito mais prejudicial tanto para o ambiente quanto para si do que se dividir o espaço com desconhecidos o
u diferentes. Depois que se constata isso na pele percebe-se como os formadores de opinião e os tomadores de decisão vivem distante da realidade da maioria e muito próximo de um mundo com espaço que já não existe mais. Algo precisa ser feito. E já.
Nem que seja tecendo novas maneiras de se ter relações com indivíduos de outras tribos e ainda assim economizando o planeta e o próprio bolso. Creio que isso seja uma forma bem interessante de se vivenciar a sustentabilidade.
Silvia Marcuzzo
Texto publicado nos blogs da Silvia no Mercado Ético.
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